A força poética de Ryana Gabech não pode ser desvencilhada da potência performática com que tem atravessado o país para divulgar sua poesia. A fluência natural que a torrente de suas palavras alcança é originária dessa encruzilhada de forças, de nascentes, de águas.
Água de concha pode ser lido como um convite para adentrarmos introspecções, pulsões e intimidades. Porém não se restringe ao mergulho, já que o livro respira mares e ventos e não hesita quando a umidade dos tempos atinge o gargalo do mundo.
A cartografia que suspende dessas águas compõe traços capazes de redescobrir sutilezas e embaralhar horizontes. Os poemas que compõem a obra chegam com o impacto da maresia no olhar e assim se entregam ao intempestivo das coisas e do toque.
“Ninho
Hoje não.
Hoje quando o tempo fecha por demais as janelas
em chuva
e a água escorre recolhimento,
eu não saio.
Me pego no colo
me
nino
zinho.” (GABECH, 2020, pg. 11)
Há uma fina camada entre a superfície e o fundo que a poesia de Gabech percorre e expõe com leveza, buscando uma fluência quase prosaica e que se torna importante para a correnteza de suas fontes.

O livro foi um dos vencedores do Edital Emergencial destinado a Artistas Escritores/as impactados pela pandemia que ainda perdura. A iniciativa foi do editor André Kondo, sensível à situação dos profissionais das artes literárias, e, diga-se de passagem, das poucas provenientes do próprio nicho editorial.
Consonante ao viés colaborativo que demarca a arte contemporânea, a Editora Telucazu contou com o seu elenco de autores/as para a empreitada. O prêmio não poderia ter sido melhor destinado do que para este livro de Ryana Gabech, poetisa que literalmente tem trilhado do Oiapoque ao Chuí para divulgar seu trabalho.
” Retrato
Tenho tudo guardado
nesta caixa:
seu último sorriso,
a cor nas minhas mãos,
pedras que formam ruas.
Pessoas, pessoas, pessoas,
alguns nós sem desatar.
Quando olho no espelho,
sou só
uma passagem de ida
e nada mais.
A morte é um lugar onde
só existe presença”. (GABECH, 2020, pg. 44)
É possível apontar o exercício da concisão e do derrame impresso no mesmo livro, só que circundando águas infindas pelo simples prazer de se diluir nelas.
Água de concha é um livro de entregas e a melhor forma de senti-lo é se despindo, sem qualquer receio do que a palavra é capaz de fazer quando a gente simplesmente se entrega.
Resenha de Éder Rodrigues – Escritor e Dr. em Literatura Latino-Americana pela Universidade Federal de Minas Gerais. Últimas obras lançadas: O Infindável Museu das Coisas Efêmeras (2020)e Três Vírgula Quatro Graus na Escala Richter (um dos vencedores do Prêmio Guarulhos de Literatura 2019).